Os Sinais de uma Árvore Velha

By 29 de março de 2021 MEUS TEXTOS, MINHA VIDA, REFLEXÃO

Os Sinais de uma Árvore Velha

Eu tenho uma cicatriz, da época de minha adolescência, uma cicatriz na minha canela direita. No clube onde eu e meus amigos jogávamos futebol havia um carrinho mão, com um pequeno volante que era usado para diversas finalidades, como por exemplo recolher o lixo de todo clube, ou levar os equipamentos de treino de um lado para o outro. Esse carrinho de mão tinha uma coroa de bicicleta que ficava logo abaixo de sua base principal, era um mecanismo muito inteligente que fazia o volante funcionar. O que mais me deixava fascinado naquele carrinho era esse volante, pois adaptaram nele um volante de caminhão, e eu, que sempre fui um apaixonado por caminhões fiquei impressionado com aquilo (risos). Um certo dia eu vi o carrinho parado, “dando sopa”, não pensei duas vezes, falei para uns três amigos meus subirem no carrinho e comecei a guia-lo por todo clube. Eu fui pegando confiança nas manobras e comecei a correr cada vez mais rápido, para minha surpresa o carrinho se chocou com um degrau pequeno de uma arquibancada e parou repentinamente, como eu estava correndo e empurrando o carrinho minha canela direita bateu com um forte impacto na coroa que controlava o lindo volante. Doeu muito, eu não tive coragem nem de olhar, me lavaram para enfermaria do clube, como havia graxa na coroa perderam um bom tempo numa dolorida limpeza. Por fim fizeram um ponto falso e um curativo. Como resultado fiquei algum tempo sem jogar futebol e com uma dor constante na perna.

Hoje, algumas décadas depois, o que sobrou desse episódio foi a história para contar e a cicatriz na perna direita. Por incrível que pareça quando eu passo a mão na cicatriz me lembro daquela dor, não dói mais, mas eu lembro daquela dor. Recentemente, olhando para minha perna direita, comecei a me lembrar de outras cicatrizes que também ficaram marcadas em mim, não apenas no meu corpo, mas são cicatrizes da alma, cicatrizes da mente, do coração. A maioria dessas cicatrizes são invisíveis para quem está do lado de fora, mas muito perceptíveis para mim que estou do lado de dentro. São memórias de tempos difíceis, de períodos de incerteza, de tentativas frustradas, memórias de dias cinzas que pairam sobre a vida de qualquer ser humano que ainda que respire e tenha um coração pulsando no peito. Algumas dessas cicatrizes são fruto de outras tantas vezes que fiquei fascinado com algo, assim imprimi um ritmo muito acelerado e acabei colidindo. Quando se tem uma família, compromissos assumidos, uma palavra empenhada, a vida não admite manobras muito radicais – conciliar essa dura realidade com o espírito jovem foi e sempre será um grande desafio para mim – e aí estão as cicatrizes para me lembrarem disso e me trazerem novamente com os pés no chão. Penso que assim é a vida do cristão, mente nos céus, coração no peito e pés no chão.

As cicatrizes demonstram experiência, sabe, aqueles sinais de uma árvore velha, que já foi sacudida e fustigada por fortes ventos, mas não sucumbiu.  Uma parte da experiência adquirida em vida está muito associada a idade, mas outra parte dessa experiência humana não tem nada a ver com idade, na minha opinião está mais ligada com a escuta, com a percepção, com a observação, com o silêncio, com a reflexão – neste sentido alguns, homens e mulheres, ainda muito jovens podem dizer como cantou Raul Seixas “Eu nasci há dez mil anos atrás. E não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais”. As cicatrizes surgem também mediante riscos assumidos, iniciativas alçadas, aquela vida que foi espremida e que deu seu suco. Aquela marca deixada, a impressão duradoura. Quando olhamos para elas, quando olhamos para as nossas cicatrizes, podemos ter a certeza de que se nós suportamos a dor de ontem, a dor do passado, seremos aptos a suportar também aquilo que dói hoje. Tenho para mim que essas cicatrizes, principalmente as invisíveis, são uma espécie de memorial, um lugar para onde nós olhamos e recrutamos forças para continuar nossa jornada em vida. Valorize suas cicatrizes, as visíveis, mas principalmente aquelas que apenas você enxerga.

Rodrigo
Março/2021